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18h45

A Lei do Marco Temporal e a Superação do Precedente do Supremo Tribunal Federal

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A Lei 14.701/2023 

O debatido tema de demarcação de terras indígenas no Brasil ganha um novo capítulo com a vigência da Lei 14.701/2023, que foi publicada no dia 28/12/2023 e republicada no dia 02/01/2024[1].

Tratada por alguns como a “Lei do Marco Temporal” a mencionada norma foi promulgada logo após o emblemático julgamento do STF do RE 1.017.365/SC, que disciplinou as condições para demarcação de terras indígenas no país.

Foi aprovada derrubando os vetos do Presidente da República, com expressivo quórum constitucional, no Senado 53 votos pela rejeição dos vetos, contra 19 votos pela manutenção, na Câmara dos Deputados 321 votos pela rejeição e 137 pela manutenção dos vetos presidenciais.

A mencionada lei disciplina matérias que são opostas as teses/condicionantes fixadas pela Suprema Corte no RE 1.017.365/SC. Eis então um novo capítulo jurídico a ser solucionado, a lei se sobrepõe ao entendimento da Corte?

 

 

Lei posterior que disciplina matéria decidida pelo STF e a superação de precedente

O Recurso Extraordinário (RE 1.017.365/SC) submetido, por unanimidade, à sistemática da repercussão geral, sob o Tema 1031, propôs a “definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”.  O processo foi julgado fixando 13 (treze) teses/condicionantes para demarcação de terras indígenas no país. 

Ocorre que a Lei 14.701/2023 contempla matérias idênticas as tratadas na decisão proferida pela Suprema Corte, sendo incompatíveis entre si. 

A título de exemplo, a mencionada lei (I) em seu artigo 4º [2] disciplinou o Marco Temporal (terras tradicionalmente ocupadas são aquelas quem em 05/10/1988 eram, simultaneamente, habitadas em caráter permanente, utilizadas etc. pelos indígenas); (ii) já em seu art.13 [3]dispôs, expressamente, que é vedada a ampliação de terras indígenas já demarcadas. Por seu turno, no RE 1.017.365/SC, a condicionante III dispõe que direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988; já a condicionante VIII estabelece que o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República.

O poder legislativo elaborou uma lei nova, sancionada posteriormente ao julgado da Suprema Corte, disciplinando matérias com ele incompatíveis. Nesse caso, a lei se sobrepõe/revoga ao julgado do STF.

O precedente criado através do RE 1.017.365/SC mantém sua força vinculante ou sua eficácia enquanto não revogado. Essa revogação pode se dar pela edição de lei posterior ou por força de outro precedente. Já a lei posterior revoga a norma criada pelo precedente (i) quando regula a mesma matéria de forma diferente do precedente, sendo com ele incompatível; ou (ii) quando incorpora o entendimento decorrente do precedente, substituindo-o, assim, como fonte normativa. Portanto, a norma do precedente criado pelo STF no mencionado RE perdeu sua obrigatoriedade e deixou de ser fonte normativa vinculante face a sua revogação pela Lei 14.701/2023.

Esse entendimento advém do próprio princípio constitucional da separação de poderes (art. 2º da Constituição Federal), como também da segurança jurídica.

Não só deles, mas, também, da sistemática normativa/legislativa nacional insculpida o artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), Decreto-Lei nº 4.657/1942, que assim dispõe:

Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a Lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1º A Lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a Lei anterior. (grifos adunados)

 

O Enunciado 324 do Fórum Permanente de Processualista Civis (FPPC)[4] dispõe que:

324. (art. 927). Lei nova, incompatível com o precedente judicial, é fato que acarreta não aplicação do precedente por qualquer juiz ou tribunal, ressalvado o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, a realização de interpretação conformar ou a pronúncia de nulidade sem redução de texto. (Grupo: Precedentes) (grifos adunados).

A incompatibilidade do precedente com lei superveniente, desde que não seja considerada inconstitucional (pelos meios/ferramentas legais próprios), acarreta a sua revogação, passível de reconhecimento por qualquer juiz ou tribunal diante do caso concreto.

O próprio STF tem entendimento consolidado sobre o tema: 

A Corte asseverou que, para admitir-se a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante, seria necessário demonstrar: a) a evidente superação da jurisprudência do STF no trato da matéria; b) a alteração legislativa quanto ao tema; ou, ainda, c) a modificação substantiva de contexto político, econômico ou social ... STF - PSV 13/DF, 24.9.2015. (PSV-13) (grifos adunados)

Assim, a Lei 14.701/2023 prevalece sobre o julgamento do STF no RE 1.017.365/SC, estando o precedente da Corte superado.

 

A Lei 14.701/2023, por divergir do novo entendimento do STF, seria inconstitucional?

Aspecto que merece ser ponderado é se a Lei 14.701/2023, como Lei Ordinária, por ser divergente do entendimento recente firmado pelo STF seria inconstitucional e violaria, no caso em análise, o artigo 231 da Constituição Federal.

A sistemática legislativa nacional autoriza a elaboração de Lei Ordinária para disciplinar matérias previstas na Constituição e seus artigos, bem como disciplinar ou superar a jurisprudência do STF. Todavia, deve estar adstrita ao quanto disposto na Constituição Federal sem ser, por óbvio, com ela incompatível, sob pena de padecer com o vício da inconstitucionalidade e ser retirada do ordenamento jurídico.  

No caso da Lei 14.701/2023 ela regulamentou o art. 231[5] da Constituição Federal, não se limitando, mas, sobretudo, no que diz respeito a interpretação da expressão “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Ou seja, as terras que tradicionalmente ocupam seriam as que os aborígenes ocupavam (sem que tenham sido retirados, comprovadamente, à força) até a 05/10/1988 ou não?

Ao disciplinar que há sim uma limitação temporal (05/10/1988), a mencionada lei não viola a Constituição Federal tampouco altera o seu texto, ela apenas apresenta a interpretação que deve ser dada ao quanto disposto no artigo 231.

E mais, a Lei 14.701/2023 foi elaborada com base no precedente firmado pela própria Suprema Corte no Caso Raposa Serra do Sol PET. 3388/RR[6], cujo julgamento fora finalizado em 2018 (julgamento dos embargos de declaração). A título de exemplo, os artigos acima mencionados (arts. 4º e 13) são reproduções do quanto disposto no mencionado julgado[7].

Após o julgamento da PET. 3388/RR o STF firmou nova interpretação ao artigo 231da Constituição e contrariou seu julgamento anterior, com posicionamento diverso, inclusive no que se refere aos dois artigos da nova lei exemplificados acima (arts. 4º e 13).

Ora, se o próprio STF proferiu dois entendimentos diversos sobre o mesmo tema, duas interpretações díspares sobre o artigo 231 da Constituição Federal, o Congresso Nacional, que é a casa legislativa, pode, por meio de Lei Ordinária, disciplinar a matéria, legislando o entendimento firmado pela Corte na PET 3388/RR, cujo julgamento transitou em julgado em 06/09/2018.

Não há, portanto, qualquer inconstitucionalidade na Lei 14.701/2023, que apenas transformou em lei o entendimento do STF sobre o quanto dispostos no art. 231 da Constituição. 

 

As demarcações administrativas de terras indígenas a partir da Lei 14.701/2023

Considerando o quanto até aqui desenvolvido pode ficar para o leitor o seguinte questionamento: como ficam os processos administrativos de demarcação de terras indígenas a partir da Lei 14.701/2023?

Pairam sobre a mencionada lei três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nos 7582; 7583; 7586 e uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 87, que discutem sua validade ou não. Até a data do presente artigo não foram julgadas, tampouco apreciadas as liminares que pleiteiam a suspensão do texto legal. 

Assim, a lei está vigente, produzindo seus efeitos e deve, obrigatoriamente, ser cumprida, devendo os processos administrativos de demarcação em tramitação cumprir com o quando nela disposto, revendo todo o seu procedimento para atestar e garantir o irrestrito cumprimento da norma. Isso sob pena de nulidade dos processos que não respeitarem a mencionada lei. 

Por outro lado, caso haja liminar de suspensão da lei pela Suprema Corte até que se julgue as ADIs e a ADC, é prudente, coerente, seguro e legalmente correto que sejam suspensos os processos administrativos de demarcação. Isso porque, dada a matéria debatida, a lei promulgada pelo Congresso Nacional, sua validade, as matérias nela envolvidas, a constitucionalidade do seu texto etc., a continuidade dos procedimentos administrativos e a eventual demarcação de terra indígena seria contrária ao texto legal aprovado, pode gerar uma insegurança jurídica sem precedentes, a irreversibilidade da medida e grande prejuízo, tanto para a população indígena quanto aos proprietários dos imóveis afetados. Sem contar nos graves conflitos e problemas jurídicos, sociais etc. que podem ocorrer caso tenham que ser revistos/desfeitos os processos de demarcação eventualmente concluídos caso a lei seja considerada constitucional (parcialmente ou totalmente) pela Corte.     

A Lei 14.701/2023 se sobrepõe ao novo julgado do STF e, por isso, a prudência e a segurança jurídica devem prevalecer na condução desse novo capítulo da demarcação de terras indígenas no país.

Por Flávio Roberto Santos


--------- 
[1] Republicada para fazer constar o caput do § 2º do art. 26, que integra o texto do dispositivo vetado pelo Presidente da República e derrubado pelo Congresso Nacional.
 
[2] Art. 4º São terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros aquelas que, na data da promulgação da Constituição Federal, eram, simultaneamente:

I - habitadas por eles em caráter permanente;
II - utilizadas para suas atividades produtivas;
III - imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
IV - necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
 
[3] Art. 13. É vedada a ampliação de terras indígenas já demarcadas.
[4]https://www.academia.edu/99186969/Rol_de_enunciados_e_repert%C3%B3rio_de_boas_pr%C3%A1ticas_processuais_do_F%C3%B3rum_Permanente_de_Processualistas_FPPC_Bras%C3%ADlia_2023 acessado em 08/04/2024 às 18:40h.
[5] Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

[6] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2288693 acessado em 08/04/2024 às 18:50h.

[7] CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa —— a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) —— como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da

ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica ... 17 - É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada ... (STF. PET 3388/RR. Min. Rel. Ayres Britto. Rel. embargos de declaração Min. Luis Roberto Barroso. Jul. 10/09/2018)
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